Os "Leões", a igreja dos Carmelitas e a igreja do Carmo
Do mesmo modo que são raros os portuenses que identificam o Jardim João Chagas, são também muito poucos aqueles que sabem localizar a Praça de Parada Leitão. E, afinal, ficam bem juntas. Com efeito, esta última mais não é do que a bem conhecida "Praça dos Leões", assim baptizada popularmente por causa da emblemática fonte na qual a água jorra pela boca de diversos felinos metálicos. Ambos, praça e jardim, faziam parte do vasto terreno aplanado que se estendia junto à Porta do Olival e das muralhas medievais da urbe portuense. E, porque, além de plano, era também amplo e comprido, reunia as condições necessárias para que os cordoeiros aqui esticassem, desde o século XV, as cordas que manufacturavam. E por isso, ainda hoje, nem João Chagas, nem Parada Leitão, nem sequer a velha designação de Olival. É pura e simplesmente a "Cordoaria".
A actual Praça Parada Leitão é, no entanto, e desde o século XVII, fortemente caracterizada por duas igrejas: a dos Carmelitas e a do Carmo. A primeira, dos Carmelitas Descalços, começou a ser construída em 1622, no "Horto do Olival", e foi concluída nove anos depois graças às esmolas e contribuições dos fiéis e da Câmara do Porto. O convento, tal como a igreja caracterizado por uma arquitectura barroca inicial e "austera", foi concluído em 1622. Após a sua extinção em 1834, na sequência da revolução liberal, aqui se instalou a Guarda Municipal do Porto e, desde 1910, a Guarda Nacional Republicana.
Mesmo ao lado, mais tardia, e de estilo rococó, bem mais exuberante do que o da sua vizinha, fica a Igreja do Carmo. Mandada construir pela Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, a primeira pedra foi lançada em 1756 mas as obras perduraram durante vários anos, tendo o arquitecto Nicolau Nasoni sido associado ao projecto em 1762. A abertura ao culto deu-se em 1768. Bem mais recentemente, em 1911-12, a fachada lateral desta igreja foi totalmente recoberta com um painel de azulejos azuis e brancos, com motivos estoriados daquela Ordem. Este painel, que se tornou entretanto num dos ex-libris da cidade, é o maior painel de azulejos do Porto. Desenhados por Silvestre Silvestri, estes azulejos foram executados na fábrica cerâmica do Senhor de Alentém, em Vila Nova de Gaia.
Rua Mártires da Liberdade
Depois de sair da cidade medieval e de atravessar o antigo Campo do Olival, o peregrino para Santiago tem, agora, que tomar uma estrada para Norte. Primeiro cruza ainda a Praça de Carlos Alberto, antigamente designada por Largo dos Ferradores, local que, como o antigo topónimo deixa adivinhar, terá sido muitas vezes utilizado pelos peregrinos para rever ou ultrapassar eventuais problemas com as ferraduras dos animais que os auxiliariam na viagem. Esta praça é dominada pelo Hospital que a Ordem do Carmo mandou construir, anexo à igreja, em 1791. Depois de cruzada a Praça Carlos Alberto deparam-se, ao viajante, duas ruas, duas antigas estradas. Actualmente muitos dos peregrinos optam, influenciados talvez por algumas setas amarelas ou por indicações turísticas discutíveis, por avançar através da famosa e comercial Rua de Cedofeita, a antiga estrada para a Póvoa. Nós, contudo, optaremos pela Rua dos Mártires da Liberdade.
Rua Mártires da Liberdade
É de origem romana a estrada que, durante séculos, ligou de um modo privilegiado o Porto ao Norte. Tratava-se da principal estrada nesta região do Império, uma via que ligava Olissipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga). Em épocas posteriores, nomeadamente na Idade Média, surgiram novas estradas. Mas nem por isso a velha via romana foi abandonada, tendo continuado a ser muito concorrida, nomeadamente para quem rumava para Braga. No início desta nossa peregrinação é o percurso dessa antiga estrada que tentamos seguir. E é por isso que seguimos pela Rua dos Mártires da Liberdade, topónimo pelo qual esta artéria é designada desde o século XIX evocando e homenageando os 12 líderes liberais mandados enforcar, em 7 de Maio e 9 de Outubro de 1829, na sequência da tentativa falhada, no ano anterior, de uma revolução que derrubasse o regime absolutista de D. Miguel e restituísse ao país o regime liberal.
Praça da República
Pouco depois da sua abertura, esta praça, então designada por Campo de Santo Ovídio, seria ocupada, no seu lado norte, por aquele que passará a ser o principal quartel militar do Porto - ainda hoje sede da Região Militar do Norte - fazendo com que, desde então, esta praça se tenha convertido em palco de importantes acontecimentos políticos e militares. Aqui se juntaram as tropas na Revolução Liberal de 1820, aqui se assistiram a movimentações na revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, este foi um dos centros nevrálgicos da revolta de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, aqui se assistiu a numerosas manifestações no período revolucionário pós-25 de Abril de 1974...
Rebaptizada, após a implantação do regime republicano em 1910, como "Praça da República", nem por isso o antigo Campo de Santo Ovídio deixa, nos nossos dias, de estar associado a um outro "santo": Padre Américo (1887-1956). Uma estátua a este padre, fundador de importantes obras de solidariedade social em meados do século XX, localizada no jardim da Praça da República está permanentemente repleta de flores e de velas. Para a Igreja católica ele não é "oficialmente" um santo. Mas isso pouco importa para as gentes do Porto que lhe têm um particular carinho e uma manifesta devoção.
Igreja da Lapa - interior
Atravessada a Praça da República, a antiga estrada para Braga passa junto a uma das igrejas mais proeminentes na paisagem do Porto e, indiscutivelmente, um dos templos religiosos mais famosos da cidade - a igreja da Lapa. Construída entre 1755 e 1863, esta igreja encontra-se profundamente associada a um dos momentos de maior tensão da história da cidade: o Cerco do Porto, ocorrido entre 9 de Julho de 1832 e 18 de Agosto de 1833 e que Almeida Garrett designou como o local e momento “em que o Portugal velho morreu e o novo começou".
Cercadas na cidade estavam as tropas liberais, do rei D. Pedro IV, defensoras de um regime liberal, moderno, assente na representatividade parlamentar. Um regime em parte inspirado nos ideais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Do outro lado, cercando a cidade, estavam as tropas do usurpador do trono, D. Miguel, absolutista, defensor de um regime ditatorial em que o poder, o poder absoluto, se deveria manter, por desígnio divino, nas mãos do rei.
Durante o ano que durou o Cerco, todos os domingos D. Pedro IV frequentou, com pompa e com todo o seu séquito, esta igreja, apesar de não se encontrar então ainda concluída.
Igreja da Lapa - Porto
1832-33 foi um ano muito duro para o Porto. Cercada, fustigada por bombardeamentos, fogos, pestes e fome, a cidade sacrificou-se, em gentes e bens, para defender a causa da Liberdade, do Liberalismo e do rei D. Pedro IV que, sensibilizado e agradecido aos portuenses, lhes prometeu o seu coração. Promessa que, de resto, seria cumprida após a sua morte que ocorreu pouco anos depois. Com efeito o seu coração, retirado do corpo logo após o seu falecimento, foi colocado num vaso de cristal que, por sua vez, foi colocado no interior de um outro vaso de prata.
Entregue à cidade do Porto, o coração do monarca foi depositado na igreja que frequentara durante o Cerco: a da Lapa. E é na capela-mor deste templo, encerrado num cofre tumular de granito, que ainda hoje se encontra o coração do rei. Curiosamente o cofre não foi concebido com um granito qualquer, já que este foi retirado de fortificações construídas durante o Cerco do Porto.
Cemitério da Lapa
Nas traseiras da igreja da Lapa desenvolve-se o cemitério com o mesmo nome. Nele podem contemplar-se perspectivas curiosas do monumento, incluindo algumas das marcas resultantes do bombardeamento a que esta zona da cidade foi sujeita em 1927, durante um episódio político-militar injustamente esquecido na história do Porto: a Revolta de Fevereiro.
No ano anterior, a 28 de Maio de 1926, Portugal assistira à instauração de uma ditadura militar e ao fim da experiência republicana iniciada em 1910. Começava assim para o país uma etapa política que durará 48 anos, durante a qual, desde muito cedo, emergirá a figura do ditador Oliveira Salazar e se caracterizará por um ultra-nacionalismo, autoritarismo, ditadura, perseguições políticas e religiosas, instauração da censura, polícia política, guerra contra os movimentos independentistas nas colónias africanas...
O regime teve, no entanto, que enfrentar ao longo desse meio século uma oposição que, não raras vezes, pela força da razão e das manifestações populares procurou o seu derrube. Bem mais raras foram as tentativas militares de acabar com a ditadura. E, entre elas, salienta-se a que teve lugar no Porto em 1927, pouco menos de um ano após a instauração do novo regime. Com efeito, os militares do Porto, na velha tradição liberal e republicana da cidade, que caracterizara todo o século XIX, revoltaram-se esperando criar uma dinâmica que alastrasse ao resto do país e permitisse a queda do regime. Mas os aliados, nomeadamente em Lisboa, demoraram a reagir e fizeram-no de um modo muito titubeante. O Porto, em armas, com militares e civis lado-a-lado nas trincheiras improvisadas na cidade, revoltou-se no dia 3 de Fevereiro desse ano. Mas, muito rapidamente, foi cercado, privado de comida, incendiado, bombardeado... mesmo de avião. Esfomeado, sem o apoio esperado de Lisboa, e sem munições, acabou por se render, cinco dias depois, em 8 de Fevereiro de 1927. E a ditadura fez tudo o que pôde para apagar esta revolta da memória da cidade e do país. Mas a verdade é que algumas das marcas dos bombardeamentos são ainda hoje visíveis na Lapa.
Cemitério da Lapa
Depois de cruzar a Praça da República e passar junto à igreja da Lapa, a antiga estrada do Porto para Braga corre, nos nossos dias, pela Rua de Antero de Quental. Nestas primeiras dezenas de metros esta artéria é acompanhada pelo muro do Cemitério da Lapa. Apesar das suas reduzidas dimensões, se comparado com outros grandes cemitérios da cidade, como é o caso do de Agramonte ou do Prado do Repouso, o cemitério da Lapa alberga os restos mortais de um número muito considerável de famosos portuenses. Casos, entre outros, de Camilo Castelo Branco, Silva Porto, Arnaldo Gama, Leonardo Coimbra, Soares dos Passos, ou Marques de Oliveira. (texto em construção)