Nesta "obra" se faz, em texto (Joel Cleto) e fotografia (Sérgio Jacques), a crónica de uma peregrinação, em bicicleta, entre a Praça da Ribeira nas margens do "Douro", no Porto, e a Catedral de Compostela, na Praça de "Obradoiro". Seguimos os antiquíssimos caminhos medievais para Santiago,atentos à História, às Lendas e ao Património, mas espreitando sempre a modernidade que, há mais de mil anos, teima em caracterizar esta via de "peregrinos" de diferentes fés, movidos por muitos e díspares motivos, interesses e desafios.

ABSTRACT

This blog is about the story of a pilgrimage from “Ribeira” Square, by the “Douro” River in Porto (Portugal), to the Cathedral of Compostela, in the Square of “Obradoiro”. Through text (Joel Cleto) and photograph (Sérgio Jacques) we follow the ancient medieval St. James’ Ways by bicycle, recording the History, the Legends and the Heritage, but always observing the modernity that, for a thousand years, goes on characterizing this way of “pilgrims” of different faiths, inspired by many reasons, interests and challenges.

DO PORTO MEDIEVAL À CIRCUNVALAÇÃO


Torre dos Clérigos e Cordoaria

Para trás ficou o Porto medieval. E agora, do lado de fora das muralhas, abre-se um vasto espaço arborizado. É o Jardim João Chagas - designação que homenageia um destacado republicano portuense do início do século XX. Mas quase ninguém conhece este jardim por esse nome. Para a generalidade dos habitantes da cidade, este jardim e toda a área que o rodeia, incluindo um grande número de edifícios emblemáticos (a Torre dos Clérigos, a Reitoria da Universidade, o Palácio da Justiça ou a Cadeia da Relação), é pura e simplesmente a... Cordoaria.
Designado durante a Idade Média como Campo do Olival, este vasto planalto, fora das muralhas, ganhará a designação de "cordoaria" a partir do século XV, quando neste amplo terreno se estabelecem os cordoeiros - artífices ligados de um modo estreito à expansão marítima dos portugueses e, muito especialmente, do Porto.
É, com efeito, nesse século que aqui se fixa esta actividade manufactureira, responsável pela produção do cordoame, das cordas, tão necessárias, não só para as embarcações que demandavam o Douro e o porto comercial da cidade, mas também para os diversos estaleiros que o Porto então possuía e nos quais eram construídas e equipadas naus, galés e outras embarcações. Não muito longe do Campo do Olival, por exemplo, nas margens do Douro, estendia-se na praia de Miragaia um desses vastos estaleiros. Que se abasteceria de cordas, seguramente, na... Cordoaria.

Os "Leões", a igreja dos Carmelitas e a igreja do Carmo

Do mesmo modo que são raros os portuenses que identificam o Jardim João Chagas, são também muito poucos aqueles que sabem localizar a Praça de Parada Leitão. E, afinal, ficam bem juntas. Com efeito, esta última mais não é do que a bem conhecida "Praça dos Leões", assim baptizada popularmente por causa da emblemática fonte na qual a água jorra pela boca de diversos felinos metálicos. Ambos, praça e jardim, faziam parte do vasto terreno aplanado que se estendia junto à Porta do Olival e das muralhas medievais da urbe portuense. E, porque, além de plano, era também amplo e comprido, reunia as condições necessárias para que os cordoeiros aqui esticassem, desde o século XV, as cordas que manufacturavam. E por isso, ainda hoje, nem João Chagas, nem Parada Leitão, nem sequer a velha designação de Olival. É pura e simplesmente a "Cordoaria".

A actual Praça Parada Leitão é, no entanto, e desde o século XVII, fortemente caracterizada por duas igrejas: a dos Carmelitas e a do Carmo. A primeira, dos Carmelitas Descalços, começou a ser construída em 1622, no "Horto do Olival", e foi concluída nove anos depois graças às esmolas e contribuições dos fiéis e da Câmara do Porto. O convento, tal como a igreja caracterizado por uma arquitectura barroca inicial e "austera", foi concluído em 1622. Após a sua extinção em 1834, na sequência da revolução liberal, aqui se instalou a Guarda Municipal do Porto e, desde 1910, a Guarda Nacional Republicana.

Mesmo ao lado, mais tardia, e de estilo rococó, bem mais exuberante do que o da sua vizinha, fica a Igreja do Carmo. Mandada construir pela Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, a primeira pedra foi lançada em 1756 mas as obras perduraram durante vários anos, tendo o arquitecto Nicolau Nasoni sido associado ao projecto em 1762. A abertura ao culto deu-se em 1768. Bem mais recentemente, em 1911-12, a fachada lateral desta igreja foi totalmente recoberta com um painel de azulejos azuis e brancos, com motivos estoriados daquela Ordem. Este painel, que se tornou entretanto num dos ex-libris da cidade, é o maior painel de azulejos do Porto. Desenhados por Silvestre Silvestri, estes azulejos foram executados na fábrica cerâmica do Senhor de Alentém, em Vila Nova de Gaia.

Rua Mártires da Liberdade

Depois de sair da cidade medieval e de atravessar o antigo Campo do Olival, o peregrino para Santiago tem, agora, que tomar uma estrada para Norte. Primeiro cruza ainda a Praça de Carlos Alberto, antigamente designada por Largo dos Ferradores, local que, como o antigo topónimo deixa adivinhar, terá sido muitas vezes utilizado pelos peregrinos para rever ou ultrapassar eventuais problemas com as ferraduras dos animais que os auxiliariam na viagem. Esta praça é dominada pelo Hospital que a Ordem do Carmo mandou construir, anexo à igreja, em 1791. Depois de cruzada a Praça Carlos Alberto deparam-se, ao viajante, duas ruas, duas antigas estradas. Actualmente muitos dos peregrinos optam, influenciados talvez por algumas setas amarelas ou por indicações turísticas discutíveis, por avançar através da famosa e comercial Rua de Cedofeita, a antiga estrada para a Póvoa. Nós, contudo, optaremos pela Rua dos Mártires da Liberdade.

Rua Mártires da Liberdade

É de origem romana a estrada que, durante séculos, ligou de um modo privilegiado o Porto ao Norte. Tratava-se da principal estrada nesta região do Império, uma via que ligava Olissipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga). Em épocas posteriores, nomeadamente na Idade Média, surgiram novas estradas. Mas nem por isso a velha via romana foi abandonada, tendo continuado a ser muito concorrida, nomeadamente para quem rumava para Braga. No início desta nossa peregrinação é o percurso dessa antiga estrada que tentamos seguir. E é por isso que seguimos pela Rua dos Mártires da Liberdade, topónimo pelo qual esta artéria é designada desde o século XIX evocando e homenageando os 12 líderes liberais mandados enforcar, em 7 de Maio e 9 de Outubro de 1829, na sequência da tentativa falhada, no ano anterior, de uma revolução que derrubasse o regime absolutista de D. Miguel e restituísse ao país o regime liberal.

Praça da República


A Rua Mártires da Liberdade desemboca numa ampla praça, no centro da qual se desenvolve um interessante jardim: a Praça da República. Local algo afastado, na segunda metade do século XVIII, do centro da cidade, esta praça foi então mandada abrir por João de Almada, na sequência da sua visão estratégica e urbanística de crescimento da cidade.

Pouco depois da sua abertura, esta praça, então designada por Campo de Santo Ovídio, seria ocupada, no seu lado norte, por aquele que passará a ser o principal quartel militar do Porto - ainda hoje sede da Região Militar do Norte - fazendo com que, desde então, esta praça se tenha convertido em palco de importantes acontecimentos políticos e militares. Aqui se juntaram as tropas na Revolução Liberal de 1820, aqui se assistiram a movimentações na revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, este foi um dos centros nevrálgicos da revolta de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, aqui se assistiu a numerosas manifestações no período revolucionário pós-25 de Abril de 1974...

Rebaptizada, após a implantação do regime republicano em 1910, como "Praça da República", nem por isso o antigo Campo de Santo Ovídio deixa, nos nossos dias, de estar associado a um outro "santo": Padre Américo (1887-1956). Uma estátua a este padre, fundador de importantes obras de solidariedade social em meados do século XX, localizada no jardim da Praça da República está permanentemente repleta de flores e de velas. Para a Igreja católica ele não é "oficialmente" um santo. Mas isso pouco importa para as gentes do Porto que lhe têm um particular carinho e uma manifesta devoção.

Igreja da Lapa - interior


Atravessada a Praça da República, a antiga estrada para Braga passa junto a uma das igrejas mais proeminentes na paisagem do Porto e, indiscutivelmente, um dos templos religiosos mais famosos da cidade - a igreja da Lapa. Construída entre 1755 e 1863, esta igreja encontra-se profundamente associada a um dos momentos de maior tensão da história da cidade: o Cerco do Porto, ocorrido entre 9 de Julho de 1832 e 18 de Agosto de 1833 e que Almeida Garrett designou como o local e momento “em que o Portugal velho morreu e o novo começou".

Cercadas na cidade estavam as tropas liberais, do rei D. Pedro IV, defensoras de um regime liberal, moderno, assente na representatividade parlamentar. Um regime em parte inspirado nos ideais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Do outro lado, cercando a cidade, estavam as tropas do usurpador do trono, D. Miguel, absolutista, defensor de um regime ditatorial em que o poder, o poder absoluto, se deveria manter, por desígnio divino, nas mãos do rei.

Durante o ano que durou o Cerco, todos os domingos D. Pedro IV frequentou, com pompa e com todo o seu séquito, esta igreja, apesar de não se encontrar então ainda concluída.



Igreja da Lapa - Porto

1832-33 foi um ano muito duro para o Porto. Cercada, fustigada por bombardeamentos, fogos, pestes e fome, a cidade sacrificou-se, em gentes e bens, para defender a causa da Liberdade, do Liberalismo e do rei D. Pedro IV que, sensibilizado e agradecido aos portuenses, lhes prometeu o seu coração. Promessa que, de resto, seria cumprida após a sua morte que ocorreu pouco anos depois. Com efeito o seu coração, retirado do corpo logo após o seu falecimento, foi colocado num vaso de cristal que, por sua vez, foi colocado no interior de um outro vaso de prata.

Entregue à cidade do Porto, o coração do monarca foi depositado na igreja que frequentara durante o Cerco: a da Lapa. E é na capela-mor deste templo, encerrado num cofre tumular de granito, que ainda hoje se encontra o coração do rei. Curiosamente o cofre não foi concebido com um granito qualquer, já que este foi retirado de fortificações construídas durante o Cerco do Porto.

Cemitério da Lapa

Nas traseiras da igreja da Lapa desenvolve-se o cemitério com o mesmo nome. Nele podem contemplar-se perspectivas curiosas do monumento, incluindo algumas das marcas resultantes do bombardeamento a que esta zona da cidade foi sujeita em 1927, durante um episódio político-militar injustamente esquecido na história do Porto: a Revolta de Fevereiro.

No ano anterior, a 28 de Maio de 1926, Portugal assistira à instauração de uma ditadura militar e ao fim da experiência republicana iniciada em 1910. Começava assim para o país uma etapa política que durará 48 anos, durante a qual, desde muito cedo, emergirá a figura do ditador Oliveira Salazar e se caracterizará por um ultra-nacionalismo, autoritarismo, ditadura, perseguições políticas e religiosas, instauração da censura, polícia política, guerra contra os movimentos independentistas nas colónias africanas...

O regime teve, no entanto, que enfrentar ao longo desse meio século uma oposição que, não raras vezes, pela força da razão e das manifestações populares procurou o seu derrube. Bem mais raras foram as tentativas militares de acabar com a ditadura. E, entre elas, salienta-se a que teve lugar no Porto em 1927, pouco menos de um ano após a instauração do novo regime. Com efeito, os militares do Porto, na velha tradição liberal e republicana da cidade, que caracterizara todo o século XIX, revoltaram-se esperando criar uma dinâmica que alastrasse ao resto do país e permitisse a queda do regime. Mas os aliados, nomeadamente em Lisboa, demoraram a reagir e fizeram-no de um modo muito titubeante. O Porto, em armas, com militares e civis lado-a-lado nas trincheiras improvisadas na cidade, revoltou-se no dia 3 de Fevereiro desse ano. Mas, muito rapidamente, foi cercado, privado de comida, incendiado, bombardeado... mesmo de avião. Esfomeado, sem o apoio esperado de Lisboa, e sem munições, acabou por se render, cinco dias depois, em 8 de Fevereiro de 1927. E a ditadura fez tudo o que pôde para apagar esta revolta da memória da cidade e do país. Mas a verdade é que algumas das marcas dos bombardeamentos são ainda hoje visíveis na Lapa.



Cemitério da Lapa


Depois de cruzar a Praça da República e passar junto à igreja da Lapa, a antiga estrada do Porto para Braga corre, nos nossos dias, pela Rua de Antero de Quental. Nestas primeiras dezenas de metros esta artéria é acompanhada pelo muro do Cemitério da Lapa. Apesar das suas reduzidas dimensões, se comparado com outros grandes cemitérios da cidade, como é o caso do de Agramonte ou do Prado do Repouso, o cemitério da Lapa alberga os restos mortais de um número muito considerável de famosos portuenses. Casos, entre outros, de Camilo Castelo Branco, Silva Porto, Arnaldo Gama, Leonardo Coimbra, Soares dos Passos, ou Marques de Oliveira. (texto em construção)



O CAMINHO NO INTERIOR DO PORTO - 2


Rua da Ponte Nova

Depois da visita à Catedral do Porto e retomando o Caminho para Santiago, há que descer o Morro da Pena Ventosa ou, como hoje é mais conhecido, o Morro da Sé. Durante muitos séculos o Porto confundia-se, limitava-se, unicamente a esta elevação. Aos seus pés corriam dois rios: o Douro, obviamente, e, do lado poente do morro, pequeno e pestilento, descia um regato, pomposamente baptizado com o nome de Rio da Vila. Nascido no lugar das Hortas, onde actualmente se desenvolvem a Praça da Liberdade e a Avenida dos Aliados, este riacho corria por um vale apertado, onde hoje encontramos a Rua Mouzinho da Silveira, e desaguava na Ribeira. Do outro lado desse vale desenvolvia-se uma outra elevação que, durante a Idade Média, começará também a fazer parte da cidade: o Morro ou Monte do Olival, mais tarde designado por morro da Vitória.
Do Rio da Vila pouco resta visível. Corre, encanado, debaixo da Rua Mouzinho da Silveira. Mas a toponímia continua a recordar a sua existência. É o caso da Rua da Ponte Nova que, da Rua da Bainharia, desce em direcção ao vale e que permitia - também aos peregrinos - a passagem, através de uma ponte sobre o riacho, do Morro da Pena Ventosa para o Monte do Olival.


Rua de Belomonte

Atravessado o Rio da Vila o viajante encontra-se no Morro do Olival, mais tarde rebpatizado com a designação de Monte da Vitória. Comparado com o morro da Sé, esta elevação era, na Idade Média, uma área bem menos importante. Pouco desenvolvida do ponto de vista urbanístico, uma parte substancial do monte manteve-se, durante muito tempo, despovoado e ocupado por hortas. Este era, também, o local daqueles que não tinham possibilidades de habitar na área urbana mais privilegiada: a do morro da Sé ou a ribeirinha. No monte do Olival viviam os pobres e os emigrantes que, vindos do interior e dos campos, se abrigavam à sombra das muralhas do burgo. Mais tarde seria também este o local de residência dos judeus.
A definitiva integração do Morro do Olival na cidade ocorre, entre 1355 e 1370, na sequência da construção de uma nova muralha do Porto (popularmente designada por “muralha fernandina”) que cercará também este monte englobando-o na malha urbana.
A ligação privilegiada entre o Morro da Sé e o topo do Morro do Olival foi feita, durante séculos, através da Rua das Ferrarias, a actual Rua dos Caldeireiros. Havia, no entanto, outros caminhos alternativos, nomeadamente para quem subia o monte do Olival a partir da zona ribeirinha. Uma dessas hipóteses era através da Rua do Belmonte e, a partir desta, pelas Escadas da Vitória. O peregrino que na Idade Média optasse por seguir por este caminho depararia, apesar de cruzar uma zona evidentemente menos importante da cidade, com uma comunidade abastada e possuídora de níveis culturais bem superiores à média da restante população: os judeus.

Escadas da Vitória ou da Esnoga

No início da Rua de Belomonte, ainda junto ao Largo de S. Domingos, nasce a extensa escadaria da Vitória. Subida penosa é, contudo e de um modo incontornável, uma das mais rápidas e directas ligações entre a parte baixa e alta do morro da Vitória. É também a partir destas escadas que se pode contemplar uma das mais belas panorâmicas sobre o Porto medieval. Mas este é, igualmente, um dos espaços onde a presença judaica na cidade perdurou até aos nossos dias. Com efeito a toponímia salvaguardou essa Memória histórica e esse Património étnico de gentes, religiões e de culturas de que também é feita uma cidade. E o Porto foi feito de igual modo, durante muitos séculos, de uma extensa e importante comunidade de judeus que, desde o século XIV, se viu proíbida de habitar no morro da Sé e, por tal motivo, foi transferida para o morro do Olival. Nascia assim a judiaria do Porto, no alto da qual se ergueu uma nova sinagoga. No final do século XV os judeus foram definitivamente expulsos da cidade e do país. Mas, sintomaticamente, as escadas que, através da judiaria, conduziam à sinagoga, as rebaptizadas Escadas da Vitória, são também, ainda hoje, designadas por Escadas da "Esnoga".



Morro da Vitória: memória da antiga judiaria


A presença de judeus no Porto está documentada desde épocas medievais muito recuadas. E, até ao século XIV, o viajante ou peregrino que penetrasse no burgo facilmente contactaria com a comunidade judaica que, embora concentrada em torno de duas ou três artérias, se localizava dentro da velha muralha românica da cidade. Sabe-se, de resto, documentalmente, que haveria mesmo uma sinagoga na actual Rua de Santana, bem perto de uma das velhas portas de entrada na povoação.
Contudo, e não obstante a aparente boa vizinhança que terá caracterizado durante alguns séculos as relações entre a maioria cristã e a comunidade hebraica da cidade, a intolerância religiosa e xenófoba acabariam por se revelar no século XIV. Trata-se de um período de grandes crises políticas, militares e sanitárias, e os judeus foram, então, como em tantas outras épocas de crise anteriores e posteriores, diabolizados, usados como "bode expiatóro" e apontados muitas vezes como os causadores de todos os males.
Este fenómeno que se alastrou a todo o continente europeu, em larga medida impulsionado pelo Papa que se encontrava na primeira linha na denúncia, combate e perseguição aos hereges judeus, chegou também a Portugal e ao Porto e, por volta de 1386, no reinado de D. João I, os judeus foram proíbidos de habitar no velho centro da cidade. A solução, por "mandado e constrangimento" do próprio monarca, foi a sua transferência para o morro fronteiro: o monte do Olival. Com esta política segregacionista juntava-se, num único bairro, os diversos núcleos judaicos, já que além do das Aldas/Santana havia também comunidades isrealitas em S. João Novo e em Monchique, no sítio conhecido por Monte dos Judeus e onde havia também uma sinagoga.
Apesar de se situar dentro das novas muralhas da cidade, erguidas poucos anos antes, a "judiaria nova do Olival" foi certamente uma solução a contra gosto dos judeus. Espaço claramente secundário, ficava também afastado do Porto ribeirinho, comercial e mais dinâmico. Mas, sem hipóteses de se oporem à vontade do rei, do bispo e dos poderosos, aí se fixaram. Aí nasceu e cresceu a judiaria, e no seu topo foi edificada a Sinagoga Nova. Até ao fim do século XV. Até uma nova e ainda mais profunda vaga de intolerância e perseguição religiosa.



Rua de S. Bento da Vitória

No final do século XV, a 5 de Dezembro de 1496, o rei D. Manuel I decreta a conversão obrigatória dos judeus (que passarão a ser designados por cristãos-novos) ou a sua expulsão do reino. A comunidade judaica do Porto, que apenas quatro anos antes acolhera pelo menos mais trinta famílias refugiadas das perseguições em Espanha, não foi excepção. Desaparecia assim a judiaria que, durante muito tempo, abrigou os médicos e físicos judeus, quase os únicos a que a população da cidade podia recorrer. Mas também mercadores, mesteirais, ourives e muitos homens cultos. E desaparecia também o lugar de culto judaico: a sinagoga.
Mais de um século depois, no terreno daquele antigo espaço religioso hebraico, foi edificado um mosteiro beneditino que, na padieira da sua portaria, ostentava, em latim, a seguinte inscrição: "Aquela que foi sede das trevas é o palácio do sol. Expulsas as trevas, o sol bento triunfa". Curiosamente é este triunfo, esta "vitória", do sol bento (o cristianismo) sobre a sede das trevas (o judaísmo, a antiga judiaria e a sua sinagoga) que estará na origem da designação deste mosteiro (S. Bento da Vitória) e do rebaptizar de toda este morro que, assim, perderá paulatinamente o seu anigo topónimo (Olival) em deterimento de Vitória.


Fonte da Porta do Olival


Após a subida doMorro do Olival, rebaptizado por Vitória, pelos motivos acima descritos, o viajante ou o peregrino saía da cidade medieval através de uma porta aberta na muralha "fernandina": a do Olival. Esta era, com efeito, uma das principais portas para quem se dirigia ou vinha do Norte. Associada a diversos episódios históricos, foi, por exemplo, através desta porta que o rei D. João I entrou no Porto, em 1387 acompanhado pela sua noiva, Dona Filipa de Lencastre, com quem casaria nesta mesma cidade.

Da antiquíssima porta já não resta qualquer vestígio. Nem da porta, nem da muralha. Contudo a memória da sua existência e o topónimo subsistem ainda. Quanto mais não seja na fonte da "Porta do Olival", construída num dos gavetos do edifício da Cadeia da Relação que, no século XVIII, foi construído no local onde ela se implantava.

Torre dos Clérigos e Praça da Cordoaria

Depois de ultrapassar a muralha medieval do Porto, através da Porta do Olival,o viajante ou o peregrino desembocavam num extenso terreno aplanado: o Campo do Olival, rebaptizado na época dos Descobrimentos com a designação de Cordoaria - topónimo que subsiste até aos nossos dias.

Entretanto, desde o século XVIII, o motivo dominante neste local é outro: a Torre dos Clérigos. Transformada há muito num dos ex-libris da cidade, esta torre granítica, barroca, é, na expressão de Teixeira de Pascoaes, o "Porto esprimido para cima". Construída durante nove anos, entre 1754 e 1763, por ordem da Irmandade dos Clérigos Pobres (e daí a designação "dos Clérigos"), obedecendo a um projecto do arquitecto Nicolau Nasoni, este imóvel possui 76 metros de altura, em grande parte vencidos, no seu interior, por uma escada em caracol com 225 degraus.

Miradouro privilegiado da cidade, a Torre dos Clérigos já serviu para muitos fins, incluindo o de telégrafo comercial e relógio da cidade.

Curioso é o facto da sua construção ter estado mergulhada nalguma polémica, em resultado do terreno escolhido para a sua implantação. Com efeito, edificada fora das muralhas da cidade, a Torre foi erigida no até aí designado "Adro dos Enforcados", local muito pouco "santificado", já que era aí que eram sepultados os criminosos que haviam sido enforcados e os que morriam "fora da religião".



Percurso no interior da cidade medieval. Da Ribeira à Porta do Olival (junto ao actual Jardim da Cordoaria): Ribeira - Praça da Ribeira - Rua dos Mercadores - Rua da Bainharia - Rua de Santana - Largo e Escadas do Colégio - Largo da Pena Ventosa - Rua das Aldas - Largo Dr. Pedro Vitorino - Terreiro da Sé - Rua Escura - Rua da Bainharia - Travessa da Bainharia/Rua Mouzinho da Silveira (sobre o Rio
da Vila) - Largo S. Domingos - Escadas da Vitória ou da Esnoga (Sinagoga) - Rua da Bateria da Vitória - Rua de S. Bento da Vitória - Fonte da Porta do Olival (Edifício da Cadeia da Relação/Campos Mártires da Pátria).