Nesta "obra" se faz, em texto (Joel Cleto) e fotografia (Sérgio Jacques), a crónica de uma peregrinação, em bicicleta, entre a Praça da Ribeira nas margens do "Douro", no Porto, e a Catedral de Compostela, na Praça de "Obradoiro". Seguimos os antiquíssimos caminhos medievais para Santiago,atentos à História, às Lendas e ao Património, mas espreitando sempre a modernidade que, há mais de mil anos, teima em caracterizar esta via de "peregrinos" de diferentes fés, movidos por muitos e díspares motivos, interesses e desafios.

ABSTRACT

This blog is about the story of a pilgrimage from “Ribeira” Square, by the “Douro” River in Porto (Portugal), to the Cathedral of Compostela, in the Square of “Obradoiro”. Through text (Joel Cleto) and photograph (Sérgio Jacques) we follow the ancient medieval St. James’ Ways by bicycle, recording the History, the Legends and the Heritage, but always observing the modernity that, for a thousand years, goes on characterizing this way of “pilgrims” of different faiths, inspired by many reasons, interests and challenges.

O CAMINHO NO INTERIOR DO PORTO - 2


Rua da Ponte Nova

Depois da visita à Catedral do Porto e retomando o Caminho para Santiago, há que descer o Morro da Pena Ventosa ou, como hoje é mais conhecido, o Morro da Sé. Durante muitos séculos o Porto confundia-se, limitava-se, unicamente a esta elevação. Aos seus pés corriam dois rios: o Douro, obviamente, e, do lado poente do morro, pequeno e pestilento, descia um regato, pomposamente baptizado com o nome de Rio da Vila. Nascido no lugar das Hortas, onde actualmente se desenvolvem a Praça da Liberdade e a Avenida dos Aliados, este riacho corria por um vale apertado, onde hoje encontramos a Rua Mouzinho da Silveira, e desaguava na Ribeira. Do outro lado desse vale desenvolvia-se uma outra elevação que, durante a Idade Média, começará também a fazer parte da cidade: o Morro ou Monte do Olival, mais tarde designado por morro da Vitória.
Do Rio da Vila pouco resta visível. Corre, encanado, debaixo da Rua Mouzinho da Silveira. Mas a toponímia continua a recordar a sua existência. É o caso da Rua da Ponte Nova que, da Rua da Bainharia, desce em direcção ao vale e que permitia - também aos peregrinos - a passagem, através de uma ponte sobre o riacho, do Morro da Pena Ventosa para o Monte do Olival.


Rua de Belomonte

Atravessado o Rio da Vila o viajante encontra-se no Morro do Olival, mais tarde rebpatizado com a designação de Monte da Vitória. Comparado com o morro da Sé, esta elevação era, na Idade Média, uma área bem menos importante. Pouco desenvolvida do ponto de vista urbanístico, uma parte substancial do monte manteve-se, durante muito tempo, despovoado e ocupado por hortas. Este era, também, o local daqueles que não tinham possibilidades de habitar na área urbana mais privilegiada: a do morro da Sé ou a ribeirinha. No monte do Olival viviam os pobres e os emigrantes que, vindos do interior e dos campos, se abrigavam à sombra das muralhas do burgo. Mais tarde seria também este o local de residência dos judeus.
A definitiva integração do Morro do Olival na cidade ocorre, entre 1355 e 1370, na sequência da construção de uma nova muralha do Porto (popularmente designada por “muralha fernandina”) que cercará também este monte englobando-o na malha urbana.
A ligação privilegiada entre o Morro da Sé e o topo do Morro do Olival foi feita, durante séculos, através da Rua das Ferrarias, a actual Rua dos Caldeireiros. Havia, no entanto, outros caminhos alternativos, nomeadamente para quem subia o monte do Olival a partir da zona ribeirinha. Uma dessas hipóteses era através da Rua do Belmonte e, a partir desta, pelas Escadas da Vitória. O peregrino que na Idade Média optasse por seguir por este caminho depararia, apesar de cruzar uma zona evidentemente menos importante da cidade, com uma comunidade abastada e possuídora de níveis culturais bem superiores à média da restante população: os judeus.

Escadas da Vitória ou da Esnoga

No início da Rua de Belomonte, ainda junto ao Largo de S. Domingos, nasce a extensa escadaria da Vitória. Subida penosa é, contudo e de um modo incontornável, uma das mais rápidas e directas ligações entre a parte baixa e alta do morro da Vitória. É também a partir destas escadas que se pode contemplar uma das mais belas panorâmicas sobre o Porto medieval. Mas este é, igualmente, um dos espaços onde a presença judaica na cidade perdurou até aos nossos dias. Com efeito a toponímia salvaguardou essa Memória histórica e esse Património étnico de gentes, religiões e de culturas de que também é feita uma cidade. E o Porto foi feito de igual modo, durante muitos séculos, de uma extensa e importante comunidade de judeus que, desde o século XIV, se viu proíbida de habitar no morro da Sé e, por tal motivo, foi transferida para o morro do Olival. Nascia assim a judiaria do Porto, no alto da qual se ergueu uma nova sinagoga. No final do século XV os judeus foram definitivamente expulsos da cidade e do país. Mas, sintomaticamente, as escadas que, através da judiaria, conduziam à sinagoga, as rebaptizadas Escadas da Vitória, são também, ainda hoje, designadas por Escadas da "Esnoga".



Morro da Vitória: memória da antiga judiaria


A presença de judeus no Porto está documentada desde épocas medievais muito recuadas. E, até ao século XIV, o viajante ou peregrino que penetrasse no burgo facilmente contactaria com a comunidade judaica que, embora concentrada em torno de duas ou três artérias, se localizava dentro da velha muralha românica da cidade. Sabe-se, de resto, documentalmente, que haveria mesmo uma sinagoga na actual Rua de Santana, bem perto de uma das velhas portas de entrada na povoação.
Contudo, e não obstante a aparente boa vizinhança que terá caracterizado durante alguns séculos as relações entre a maioria cristã e a comunidade hebraica da cidade, a intolerância religiosa e xenófoba acabariam por se revelar no século XIV. Trata-se de um período de grandes crises políticas, militares e sanitárias, e os judeus foram, então, como em tantas outras épocas de crise anteriores e posteriores, diabolizados, usados como "bode expiatóro" e apontados muitas vezes como os causadores de todos os males.
Este fenómeno que se alastrou a todo o continente europeu, em larga medida impulsionado pelo Papa que se encontrava na primeira linha na denúncia, combate e perseguição aos hereges judeus, chegou também a Portugal e ao Porto e, por volta de 1386, no reinado de D. João I, os judeus foram proíbidos de habitar no velho centro da cidade. A solução, por "mandado e constrangimento" do próprio monarca, foi a sua transferência para o morro fronteiro: o monte do Olival. Com esta política segregacionista juntava-se, num único bairro, os diversos núcleos judaicos, já que além do das Aldas/Santana havia também comunidades isrealitas em S. João Novo e em Monchique, no sítio conhecido por Monte dos Judeus e onde havia também uma sinagoga.
Apesar de se situar dentro das novas muralhas da cidade, erguidas poucos anos antes, a "judiaria nova do Olival" foi certamente uma solução a contra gosto dos judeus. Espaço claramente secundário, ficava também afastado do Porto ribeirinho, comercial e mais dinâmico. Mas, sem hipóteses de se oporem à vontade do rei, do bispo e dos poderosos, aí se fixaram. Aí nasceu e cresceu a judiaria, e no seu topo foi edificada a Sinagoga Nova. Até ao fim do século XV. Até uma nova e ainda mais profunda vaga de intolerância e perseguição religiosa.



Rua de S. Bento da Vitória

No final do século XV, a 5 de Dezembro de 1496, o rei D. Manuel I decreta a conversão obrigatória dos judeus (que passarão a ser designados por cristãos-novos) ou a sua expulsão do reino. A comunidade judaica do Porto, que apenas quatro anos antes acolhera pelo menos mais trinta famílias refugiadas das perseguições em Espanha, não foi excepção. Desaparecia assim a judiaria que, durante muito tempo, abrigou os médicos e físicos judeus, quase os únicos a que a população da cidade podia recorrer. Mas também mercadores, mesteirais, ourives e muitos homens cultos. E desaparecia também o lugar de culto judaico: a sinagoga.
Mais de um século depois, no terreno daquele antigo espaço religioso hebraico, foi edificado um mosteiro beneditino que, na padieira da sua portaria, ostentava, em latim, a seguinte inscrição: "Aquela que foi sede das trevas é o palácio do sol. Expulsas as trevas, o sol bento triunfa". Curiosamente é este triunfo, esta "vitória", do sol bento (o cristianismo) sobre a sede das trevas (o judaísmo, a antiga judiaria e a sua sinagoga) que estará na origem da designação deste mosteiro (S. Bento da Vitória) e do rebaptizar de toda este morro que, assim, perderá paulatinamente o seu anigo topónimo (Olival) em deterimento de Vitória.


Fonte da Porta do Olival


Após a subida doMorro do Olival, rebaptizado por Vitória, pelos motivos acima descritos, o viajante ou o peregrino saía da cidade medieval através de uma porta aberta na muralha "fernandina": a do Olival. Esta era, com efeito, uma das principais portas para quem se dirigia ou vinha do Norte. Associada a diversos episódios históricos, foi, por exemplo, através desta porta que o rei D. João I entrou no Porto, em 1387 acompanhado pela sua noiva, Dona Filipa de Lencastre, com quem casaria nesta mesma cidade.

Da antiquíssima porta já não resta qualquer vestígio. Nem da porta, nem da muralha. Contudo a memória da sua existência e o topónimo subsistem ainda. Quanto mais não seja na fonte da "Porta do Olival", construída num dos gavetos do edifício da Cadeia da Relação que, no século XVIII, foi construído no local onde ela se implantava.

Torre dos Clérigos e Praça da Cordoaria

Depois de ultrapassar a muralha medieval do Porto, através da Porta do Olival,o viajante ou o peregrino desembocavam num extenso terreno aplanado: o Campo do Olival, rebaptizado na época dos Descobrimentos com a designação de Cordoaria - topónimo que subsiste até aos nossos dias.

Entretanto, desde o século XVIII, o motivo dominante neste local é outro: a Torre dos Clérigos. Transformada há muito num dos ex-libris da cidade, esta torre granítica, barroca, é, na expressão de Teixeira de Pascoaes, o "Porto esprimido para cima". Construída durante nove anos, entre 1754 e 1763, por ordem da Irmandade dos Clérigos Pobres (e daí a designação "dos Clérigos"), obedecendo a um projecto do arquitecto Nicolau Nasoni, este imóvel possui 76 metros de altura, em grande parte vencidos, no seu interior, por uma escada em caracol com 225 degraus.

Miradouro privilegiado da cidade, a Torre dos Clérigos já serviu para muitos fins, incluindo o de telégrafo comercial e relógio da cidade.

Curioso é o facto da sua construção ter estado mergulhada nalguma polémica, em resultado do terreno escolhido para a sua implantação. Com efeito, edificada fora das muralhas da cidade, a Torre foi erigida no até aí designado "Adro dos Enforcados", local muito pouco "santificado", já que era aí que eram sepultados os criminosos que haviam sido enforcados e os que morriam "fora da religião".



Percurso no interior da cidade medieval. Da Ribeira à Porta do Olival (junto ao actual Jardim da Cordoaria): Ribeira - Praça da Ribeira - Rua dos Mercadores - Rua da Bainharia - Rua de Santana - Largo e Escadas do Colégio - Largo da Pena Ventosa - Rua das Aldas - Largo Dr. Pedro Vitorino - Terreiro da Sé - Rua Escura - Rua da Bainharia - Travessa da Bainharia/Rua Mouzinho da Silveira (sobre o Rio
da Vila) - Largo S. Domingos - Escadas da Vitória ou da Esnoga (Sinagoga) - Rua da Bateria da Vitória - Rua de S. Bento da Vitória - Fonte da Porta do Olival (Edifício da Cadeia da Relação/Campos Mártires da Pátria).

2 comentários:

Isabel Victor disse...

Caminhantes ...

Amigos. Companheiros. Isto vai !

Acompanho-vos neste vosso caminhar.

Des.en.caminho.os para uma água fresca :)) ...


*** da isabel

e ... vou roubar uma foto ao peregrino Sérgio ! Adoro ...

Daniel Paradinha disse...

Boas! em finais de Junho, deste ano 2010, eu e mais uns amigos seguimos um grupo liderado pelo Joel Cleto (penso que é o historiador que falava).. Gostamos bastante e vamos fazer algo parecido hoje mesmo, combinamos escolher locais e monumentos de interesse e vamos falar sobre os mesmos :) Vaos estar atentos